“O coração à beira de um ataque. A certeza de te encontrar. A sintonia nítida, única. A madrugada. Cômodos e casas destruídos. Nossa ruína.”
Embalada nos braços de Sandman reencontro uma vez mais um cenário que conheço tanto. Um sonho que se repete com pouca frequência, mas que me tira do ar, me arranca os anos, me tira a vida. Um preço alto, mas pelo qual pago sem hesitar até o fim dos tempos. Ver-te, encontrar-te. Nos subterrâneos do salão onde realiza-se o culto negro. Ser sua. Ser sua por segundos, ser para sempre.
Meus pés sabem exatamente quais caminhos percorrer. Desço do trem como se esperasse minha morte. E minha morte é você! Caminho entre a multidão apagada. Atravesso avenidas, percorro uma longa distância antes de entrar à esquerda, em uma pequena rua esquecida. O fim do dia cede à noite vagarosamente, a contragosto. A fuligem consome a cidade cinza. Caminho até a metade do segundo quarteirão e avisto, ansiosa, uma porta metálica discreta, onde se lê, logo acima, contra o céu desbotado, Motel.
Sei que me conhecem. Mas na recepção sinto como se não. Peço o quarto 666. Ali existe a passagem para o culto negro. E você estará numa sala, logo após a descida através do salão sombrio.
Pego um elevador. Sexto andar. Ele pára suavemente. Desço, e andando pelo corredor estranhamente claro, parcebo que o Motel foi reformado. Nosso quarto, demolido. Nada do que conheço está ali. Corro em lágrimas entre as portas desconhecidas. O odor é de tinta fresca. Destruído! Meu último acesso a você.
Acordo banhada em lágrimas com a lembrança dos encontros anteriores proporcionados nas terras de meu pai; Sandman.
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Lembro-me com dor exatamente o que havia atrás da porta de número 666: um portal magnífico que escancarava-se para o que parecia ser um grande salão. Sua escuridão sem tamanho gritava por minha alma. Recordo-me de atravessar para o outro lado sem pensar sequer uma vez, pois sabia quem iria encontrar.
Lá dentro, ao centro, sobre uma impressionante mesa de madeira circular, crepitavam dezenas de velas vermelhas que embora em grande número, não eram suficientes para iluminar mais do que alguns poucos metros ao seu redor. Pessoas, ou o que pareciam ser, circulavam em volta da enorme mesa, trajadas em capas pretas longas, pareciam flutuar sobre o marmore que refletia o bruxelear incessante das luzes. Cobertos por capuzes enormes, os seres andavam aos pares murmurando palavras ininteligíveis, enquanto a luz torcia seus rostos formando expressões que jamais vi na vida real. A sensaçao era macabra, e o ar estava carregado de um cheiro antigo, mas muito familiar em meus sonhos. O cheiro do além..
Era preciso cruzar o salão, o rito, o que quer que fosse, e por fim encontrar-te. Sempre soube.
Era preciso superar o medo, a dor, a danação eterna.
Andei rapidamente em direção ao centro iluminado. Algumas caveiras cobertas por cera vermelha derretida completavam a mórbida decoração da mesa. Em ritos como esses, ossos e crânios têm posições certas, como atores em um palco teatral. Contornei a mesa quase sem respirar, sentindo olhares discretos e ameaçadores de muitos que ali se encontravam.
Segui ao norte até o fim do aposento, onde iniciou-se uma lenta descida. Embora enxergasse nitidamente, não haviam luzes, apenas um vento frio insistente. O caminho serpenteava inclinando-se para baixo cada vez mais íngrime. Meu coraçao por certo já havia parado, e ficado para trás, esquecido em alguma curva. Quando senti que devia estar morta, a descida cessou, e terminou em outro sinistro portal pelo qual atravessei para um estreito ambiente vazio de paredes negras e muitas portas fechadas. Um labirinto que sempre soube como percorrer.
O 666 do nosso amor estava ali, atrás da porta que escolhi abrir. Encarei teus olhos escuros de lobo, a barba negra e hirsuta, sua alma sem piedade. Entreguei-me...em sangue e amor.
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Não o encontraria mais. Nosso quarto fora destruído. Nossa ligação também. Desde essa madrugada não o vejo em sonhos. Estou bloqueada deste lado. Sinto sua falta. Meu peito arde.....
Morrer é fácil....viver com essa saudade é o purgatório a que fui condenada. Tenha piedade lobo! Esse corvo faleceu.....e renasceu....sobre quatro patas....
Patas essas que perseguir-te-ão até o inferno, até o fim dos tempos.
Aurrrrrr